Por Dr. Horácio Friedman

 

Creio que a análise nada ortodoxa de Mahler por Freud foi na realidade a análise de Mahler e de sua esposa Alma. Foi a análise de uma relação conjugal singular.

Brincando com a palavra alma, foi a busca da compreensão da dinâmica da convivência de duas almas.

No auge de sua maior crise existencial, Mahler busca o auxílio de Freud, o médico das almas.

O encontro entre os dois, em Leiden, Holanda, em agosto de 1910, é marcado por um tenso início. Tensão! O musicólogo Donald Mitchell (Mahler and Freud, 1958) sugere que tensão seja o mais adequado termo para qualificar o tempero da música de Mahler. Entende que tensão pressupõe conflito entre dois polos de pensamento ou sentimento. Do conflito suprimido emerge a característica tensão. Contudo, a tensão é também expressa frequentemente pela música de Mahler através da justaposição de temas, estados de espírito ou textura harmônica divergentes. Há uma tensão inesperada em sua obra e também em sua iminente experiência psicanalítica. Marca e desmarca por três vezes seguidas sua consulta com Freud, sinalizando aparentemente uma resistência intensa seja ao método, seja à exposição dos segredos de sua alma. Aparentemente, o encontro somente ocorreu por conta da insistência de Alma.

A análise ocorre após oito anos de casamento, Mahler vinte anos mais velho, introvertido, ascético, amante do isolamento e desapegado das coisas mundanas. Alma, gregária e sedutora, célebre beldade, de vida social glamorosa em Viena, segundo observações do maestro Bruno Walter, amigo de Mahler. Antes do casamento, Alma teve relacionamentos apimentados com seus professores de pintura – Gustav Klimt e de piano – Alexander Zemlinsky. Mahler condicionou o casamento à renúncia de Alma às suas pretensões artísticas : “O papel de compositor é meu – o seu é de companheira amorosa.” Alma vinha compondo há alguns anos e suas canções, bem como seus dons como pianista e pintora eram admirados. Agora porém Alma está barrada, suas asas são cortadas. Parece-me que a liberdade que os pais lhe concediam é abolida por Mahler. Após a lua de mel, foram morar numa casa de campo, longe das noites de Viena. Para Alma, restavam a solidão e os afazeres domésticos. Ela escreve em seu diário: “Eu perdi todos meus amigos e amigas e hoje tenho um marido que não me compreende.” Um trágico evento foi a perda da filha mais velha, Maria Anna, por difteria, em 1907. Mahler, seguindo orientação médica, envia sua jovem esposa para uma temporada no SPA de Tobelbad em 1910, em face ao estado emocional de Alma. Esta, dizem os biógrafos, encontrou a calma e a cura de suas aflições não nas fontes termais, mas na figura do belo e jovem arquiteto Walter Gropius. Após a volta de Alma para casa, Gropius continuou a lhe escrever, propondo-lhe que vivessem juntos. Uma dessas cartas apaixonadas foi endereçada a Mahler. Este, ao ler a carta e dialogar com Alma e Gropius, conclui que estava diante do resultado de anos de repressão que impusera à esposa. De fato, Alma o culpa pela falta de amor e atenção, mas acabou optando por continuar com Mahler, que procurou por sua vez mudar seu comportamento conjugal, partilhando as decisões com a esposa e interessando-se por sua obra  musical.  Contudo, em seguida, ele entrou em depressão, passou a apresentar um ciúme extremo, de tudo e de todos, nas palavras de Alma e aparentemente perdeu a libido, o que culminou em sua busca de auxílio psicanalítico, sob a pressão da esposa.

Menções à consulta de Mahler com Freud são encontradas na biografia de Freud por Ernest Jones, numa carta de Freud ao psicanalista Theodor Reik, num resumo escrito por Maria Bonaparte e nos diários de Alma Mahler.

Contudo, é altamente provável que nem tudo de interessante que ocorreu durante o encontro tenha sido relatado.

Mas, que dados objetivos temos realmente do conteúdo da análise?

Mahler se preocupava com a diferença de idade. Contudo, para Freud, essa característica o fazia atrativo para uma mulher jovem, bela e culta.  Alma amava o pai, o famoso pintor Schindler, de quem há uma estátua em Viena. Maler significa pintor em alemão. Portanto, para Freud, Mahler estaria oferecendo a figura do pai substituto para Alma. Freud fez outra observação que impressionou muito a Mahler: “Presumo que sua mãe chamava-se Marie. Posso supor isso a partir de várias indicações em sua conversa. Como é possível que o senhor tenha se casado com alguém que tenha outro nome, Alma, já que sua mãe evidentemente desempenhou papel dominante em sua vida?” Mahler então disse que o nome de sua mulher era Alma Maria, mas que ele a chamava Marie!  Freud lhe diz: “Você amava tanto a sua mãe, que a procura em todas as mulheres. Ela era carinhosa e enfermiça e, inconscientemente, você deseja que sua mulher seja igual.” Para Mahler, Alma era o ponto central, o pivot de sua vida. Quando Mahler lhe relata essas conclusões, Alma julga que Freud acertou na mosca. Segundo ela, Mahler teve um primeiro impulso para mudar o nome de Alma para Marie e queria que o rosto dela fosse “mais pesaroso”. Certa vez, disse à mãe de Alma que era uma pena ter havido tão pouco tristeza na vida da jovem, ao que a mãe retrucou: “Não se preocupe – isso ainda virá.”  Alma também concorda com o diagnóstico que Freud faz da fixação dela pelo pai: “Sempre procurei um homem pequeno, fraco, que tivesse sabedoria e superioridade espiritual, pois era isso o que eu amava no meu pai.”

Freud ainda acrescenta: “Mahler disse que agora entendia por que razão sua música sempre tinha sido impedida de alcançar o ponto mais alto nas passagens mais nobres, inspiradas por emoções profundas, sempre arruinadas pela intromissão de alguma melodia trivial. Seu pai, aparentemente uma pessoa brutal, tratava muito mal a mulher e, quando criança, Mahler testemunhou uma cena especialmente dolorosa entre o casal. Foi algo insuportável para ele, que saiu correndo de casa. Naquele momento, porém, encontrou na rua um realejo tocando uma popular cantiga vienense. Na opinião de Mahler, a conjunção de alta tragédia e diversão ligeira, trivial, ficou desde então transfixada em sua mente, e um estado de espírito traz inevitavelmente o outro.” Essa associação poderia explicar para alguns estudiosos da obra de Mahler (mahleritas) a tensão e a presença de temas triviais entremeados a outros intensos e trágicos. A comédia alivia a tragédia.

De qualquer forma, os dados existentes parecem indicar que Freud ficou impressionado com a facilidade com que Mahler compreendeu a psicanálise e que Mahler, inicialmente avesso a Freud e a suas teorias, entrou em estado de júbilo após a sessão: “Sentindo-me animado. Discussão interessante. Vivendo como se tudo fosse novo. As sombras da noite se dissiparam graças a uma palavra potente, etc. “ são alguns dos pensamentos que Mahler transmitiu a Alma em sua viagem de retorno.

Após retornar, Mahler olhou novamente as composições de Alma e começou a tocá-las no piano. “O que eu fiz? Essas canções são boas, são excelentes […]. Não vou descansar até que você comece a trabalhar de novo. Deus, como fui tacanho naqueles dias!”

Mahler dedica à mulher sua “Oitava Sinfonia” e publica obras dela, que estreiam em Viena e New York. Contudo, falece nove meses depois, em maio de 1911.

Numa carta 25 anos mais tarde, Freud escreveu a Reik: “Analisei Mahler […] durante toda uma tarde em Leiden e se posso acreditar nos relatos, endireitei muita coisa nele. Sua visita lhe parecera necessária porque na época sua mulher se insurgia contra a alienação da libido dele em relação a ela. Fizemos os mais interessantes levantamentos por meio de sua vida e de suas condições amorosas, principalmente seu complexo de Santa Maria (fixação materna). Eu tive muitas oportunidades de admirar a capacidade de compreensão psicológica deste compositor tão genial. A princípio, nenhum raio de luz conseguiu iluminar a fachada que ocultava sua neurose obsessiva. Seria como tentar cavar com uma vara, uma passagem através dos alicerces de um misterioso edifício.”

O velho Mahler, a jovem Alma. Na expressão da alma poética de Mahler, “o outono e a primavera.” O cinza, a umidade fria, a morte apoptótica das folhas versus a exuberante erupção multicolorida das flores sob o azul celestial e o sol primaveril. À primeira vista e para muitos, eram duas almas divergentes. Contudo, a análise de Freud demonstrou o oposto e catalizou a reconciliação. Talvez estivesse presente a pulsão de morte buscando catexia através da pulsão de vida, mas seguramente houve também uma busca simbiótica. São duas almas que convergem quanto à fagulha da composição musical erudita, ambas com talentos extraordinários, sensibilidade apurada, mas também ambição proeminente. Talvez a comédia aliviando a tragédia não se encontre apenas na obra de Mahler. Quando o sofrimento decorrente da perda da filha e da vida lúgubre com Mahler conduz Alma ao SPA, ela também possivelmente encontrou para sua tragédia e pulsão de morte, alívio, alegria, pulsão de vida na companhia de Gropius. É possível que as duas almas tenham afinal várias similitudes e complementaridades.

No meu modo de ver, no filme Mahler no divã, há ingredientes tão ricos em energia que não se poderia gerar uma história insípida. A vida do casal Mahler-Alma soa para mim como um misto de paixões conflituosas e tragédias da maior magnitude na superfície de um oceano melódico que toca a alma, que tudo cura, que transcende os dramas pessoais.