Quando resolvi dar uma espiada na recém-lançada película de Lars Von Trier, “Ninfomaníaca”, pelo padrão epistêmico do Dogma 95, nunca entrou no meu Imaginário que seria um filme pornô, como certos jornais não pensantes absurdamente propagaram.
Lars Von Trier é polêmico. Nunca se serviria para algo que não fosse o campo epistemológico do sujeito. Reflitam sobre “O Anticristo” e “Melancolia”. Nesta película tratou da estrutura psicótica do sujeito humano, a partir do famoso caso das irmãs Papin (estudado por Lacan durante a elaboração de sua tese de doutorado em psiquiatria em Paris) e da peça “As Criadas”, de Jean Genet, o protegido de Sartre.
Ao contrário de pornografia ou sexo por sexo, o filme lança um interessante questionamento ético e psicanalítico sobre o conceito lacaniano “a relação sexual não existe”.
Durante todo o longa, Joe coloca-se como uma personagem atormentada pela noção do pecado, da culpa e da auto-acusação de ser uma pessoa má. Ela, no divã, é escutada por um senhor que faz o papel de seu psicanalista, interpretando, tentando fazê-la transitar no nó borromeo de Lacan, RSI, Real Simbólico e Imaginário. No contexto da culpa, depreende-se que Joe utilizara (sic) o seu lugar de mulher para causar o mal para si mesma e a outros sujeitos no mundo.
As cenas de sexo são lançadas na diacronia dos dois anos de idade até os cinquenta anos da personagem.
Trechos significantes podem ser destacados. Aos 2 anos de idade descobre sua genitália. Aos 15 anos planeja a primeira relação sexual de maneira fria e racional, cena que Lars Von Trier descreve com os números 3 e 5, números da série de Fibonacci. A partir daí, a relação sexual que não existe – lacanianamente – passa a existir em uma estrutura clínica perversa, mesclada com uma neurose histérica, já que a culpa e a noção de pecado não desaparecem hora nenhuma.
A personagem tivera uma complexa relação com os seus grandes Outros parentais. A mãe, odiada, foracluída, como primeiro objeto do amor diádico. A mãe = a vadia no psiquismo de Joe. A foraclusão do Nome-do-Pai, na medida em que a figura paterna associa-se ao estado de natureza, de onde não sai, na mente de Joe, e transforma-se no falo ⱷ (phi minúsculo). A cena do Édipo não se estrutura no sujeito do inconsciente de Joe. Por que Édipo é o amor marcado pelo significante, mas também castrado, frustrado e privado. Com base nessa fenomenologia inconsciente, Joe nega a possibilidade do amor em sua existência, elogiando sempre a sua ligação com a pulsão de morte conectada ao sexo como pensamento selvagem, de acordo com o antropólogo Claude Lévy-Strauss em sua obra “O Pensamento Selvagem”.
Na obra, fala-se em Epicuro e a existência humana. Em Edgar Allan Poe, a angústia, os delírios e alucinações antes de sua morte. Fala-se em Palestrina, Bach, compositores barrocos. A polifonia musical é detalhada. Fala-se do caráter diabólico do Trítono. Por que tanta polifonia? As várias vozes do Eu/Je ou sujeito do inconsciente?
A película não deixa de ser uma análise crítica, ética, filosófica e psicanalítica do mercado do sexo no mundo ocidental, veiculado especialmente pela mídia Górgona que paralisa e destrói o desejo ético dos sujeitos.
Na última cena sexual, Joe afirma “não sinto mais nada”, quer dizer, não tenho orgasmos ou qualquer outro sentimento concernente à “relação sexual que não existe”. Não sei como acontecerá o segundo volume do filme. Persistirá o incesto fantasístico sexual com o pai ou virá algo que seja a superação do pensamento selvagem inconsciente? Esperemos, portanto.
Dr. Campos
Psicanalista didáta