Por: Marleide Pak, psicanalista membro da ARPI

Este filme mostra Érika Kohut de 40 anos – professora de piano, especialista em Franz Peter Schubert – do aclamado Conservatório de Viena, interpretado com brilhantismo pela atriz francesa Isabelle Huppert, vivenciando uma das áreas mais sombrias da sexualidade humana, o que FREUD nomeou de “aberrações sexuais” e o que ROUDINESCO (2008) diz como sendo a ”parte obscura de nós mesmos”. Sabemos também, segundo os escritos de FREUD de 1905 que toda a fundamentação da sexualidade é perversa, o famoso “perverso-polimorfo”.

Está presente neste filme o abuso da perversão, traços de perversidade, o gozo sadomasoquista, o voyeurismo e o fetichismo de uma mulher quarentona, cujo cerne de sua existência está entre dois mundos opostos a arte e a loucura. Vive uma relação simbiótica de amor e ódio – o que Lacan nomeou de Hainamoration – Amódio, com uma mãe extremamente possessiva e castradora, mas ao mesmo tempo permissiva e porque não perversa. Mãe esta, que não dá espaço para a subjetividade da filha. Em certa ocasião rasga o vestido que a filha havia comprado. Érika vive à mercê do gozo materno. Irrita-se com as intromissões da mãe, mas acaba por permitir as investidas materna e até a perdoá-las, deitando-se na mesma cama que a mãe, apesar de ter o seu próprio quarto. As duas, mãe e filha vivem a díade primeira cuja escolha do objeto amoroso feita pela criança é a mãe. É um amor siderado, um bi-gozo arcáico sem limites, até o momento em que aparece o pai poderoso, fálico, que agirá e cortará o gozo, fazendo com que surja um sujeito capaz de subsistir no mundo. No caso de Érika, acreditamos que a fase pré-edipiana não foi superada, mãe e filha ainda continuam coladas, já que não houve um terceiro, – o Grande Outro paterno, para barrar/castrar a orgia entre mãe e filha, orgia essa, diga-se de passagem, necessária mas até certo ponto. A verdade é que na família Kohut o que há é um pai duplamente ausente, ou seja, não há um pai encarnado e nem um pai simbólico, talvez um pai imaginário, pai este complacente e silencioso e que foi denegado (Verleugnung). Não há nessa mãe um desejo de mulher, incapacitando-a da fundação do Outro paterno, permanecendo, assim a díade primeira, onde a lei da castração não impera. Somente a passagem pelo Édipo, mais precisamente pelo horror da castração, é determinante para a estruturação do sujeito. Podemos perceber que essa passagem deixou marcas profundas no sujeito Érika, isso nos leva a crer que no caso da professora de piano se trata de algo além de uma mera perversão polimorfa.  O pai de Érika viveu e morreu em um hospício. Érika tomou o lugar desse pai, dividindo a mesma cama que a mãe, simulando até uma relação sexual com a própria mãe (incesto) e agindo por vezes como um “macho” perturbado frequentando casas de exibição de vídeos pornográficos, onde compete com os outros homens para assistir a cenas de sexo explícito (voyeurismo).

Érika vive a perversão polimorfa, num regime de gozo, vivencia o traço universal e original do ser humano, busca o não encontro com a castração, com o que falta, nega a castração materna, recusa a reconhecer que falta alguma coisa ao Outro, por mais que no fundo saiba perfeitamente que falta alguma coisa ao Outro. Deparar-se com essa falta que horroriza o sujeito, tentando assim, recuperar outrora o que foi perdido. A vida de Érika se resume a dar aulas de piano – não tem amigos e nem namorado – e às escapadas da vigilância materna exercendo a sua perversão multifacetada. Enquanto o neurótico recalca no inconsciente as suas fantasias perversas, o perverso coloca em ato as suas perversões, conclui-se que na perversão a pulsão se apresenta em sua nudez, bruta, selvagem.

 O feminino é mostrado como o desprezível. Vimos isto logo após a cena em que Érika mutila sua genitália com uma lâmina, na banheira do seu quarto, sente alívio e gratificação sexual. O sangue que corria pelas pernas da filha – a menstruação – é interpretado pela mãe como causa do seu mau humor. Podemos ver aí, neste “verdadeiro mundo feminino” a depreciação da feminilidade e da maternidade e o impossível com o masculino.

Érika, a conceituada e impecável professora de piano, sisuda e nada afetiva, na verdade detentora de uma grande tirania, dirigi a seus alunos talentosos e esforçados comentários ríspidos e desencentivadores. Coloca cacos de vidro no bolso do casaco de uma aluna para impedi-la de tocar e reage ao ocorrido de maneira dissimulada. Quando Érika cruza com um de seus alunos na loja de artigos pornôs, ela neste instante, não se abala, mas na aula seguinte critica o desempenho do seu aluno chamando-o de porco, nojento, dizendo que ele era incapaz de concentrar-se devido às sua fantasias sujas. Me parece que a professora fala de si mesma. São traços perversos que fazem com que Érika sinta um prazer imensurável em maltratar e depreciar os seus alunos. Este prazer nasce da satisfação do sofrimento do outro.

Quando Érika conhece Walter Klemmer, (Benoît Magimel) que se apresenta para fazer aulas de piano, mas já deixando bem claro o seu interesse afetivo por ela. Érika foge de Walter, pois o encontro com homens a perturba, é como se não fosse possível se deixar penetrar. Walter tenta lhe mostrar o viés do amor (o simbólico), algo inaceitável para Érika, ela tenta se relacionar com o rapaz da maneira que agrade ao jovem, más isso faz com que Érika se desespere, lhe causando, até mesmo, vômitos. Então a professora de piano tenta iniciar um jogo sadomasoquista, cuja partitura (a carta entregue a Walter) foi escrita e entregue a Walter por ela mesma, onde ela seria a maestrina. Tudo deveria acontecer no ritmo de sua batuta. A fantasia do perverso é pelo viés do gozo, pois sua relação com a polaridade amorosa é precária, o que lhe impede de fazer laço com o outro enquanto sujeito, mas sim enquanto objeto. O gozo fica como uma defesa em relação ao vínculo amoroso, pois o vínculo amoroso alude a certa castração do gozo. Walter Klemmer é mero objeto de gozo da professora de piano. A professora trata os seus alunos sadicamente, e busca com Walter o mesmo tipo de relação. Podemos observar isso na cena onde Érika abre mecanicamente o zíper da calça do rapaz e toca apenas o seu objeto de fetiche, o pênis, impendindo-o de acariciá-la ou mesmo de reagir a seus toques. Érika também se coloca como mero instrumento de gozo para Walter, isso ilustra o que Freud disse em 1905:” o sadismo e o masoquismo são vertentes de uma mesma perversão”, cuja forma ativa ou passiva tem proporções variáveis no mesmo sujeito: ou seja, um sádico é também sempre um masoquista.

Certa feita Walter decide realizar as fantasias da professora de piano. Érika propõe o roteiro sadomasoquista, como disse anteriormente, com muitos fetiches, correntes, cordas, máscaras de borracha etc…, no qual ela seria o objeto: ele a trancaria no quarto, a espancaria, tudo definido por Érika. Ela seria a professora e o jovem rapaz o instrutor.

Walter vai à casa de Érika e dá inicio ao ritual sadomasoquista. O ritual não condiz com o esperado, foge do controle de Érika. A mãe de Érika tinha uma participação no ritual, ela seria a “salvadora” do espancamento a que Érika estaria sujeita.

O filme termina com a professora de piano aguardando ansiosamente a chegada de Walter ao Conservatório de Viena, onde Érika tocaria. Isto acontece após a noite sadomasoquista na casa de Érika, onde as coisas escaparam do seu controle. Munida de uma faca, a professora de piano possuída por uma pulsão destrutiva desfere um golpe no próprio peito, como uma forma de contrariar e agredir aos outros. Transgredir, característica do perverso. Érika deixa o recinto gozando e colocando em ato mais uma das múltiplas  facetas da sua perversão.