O PROCESSO: APROXIMAÇÕES DE KAFKA E FREUD/LACAN NO PROCESSO DE ANÁLISE

 

Quando Kafka nasceu, Freud estava prestes a divulgar os elementos fundantes da psicanálise, que Lacan viria a unificar como ICs. No mesmo período de tempo, no encontro do séc. XIX com o XX, criaram-se outras sucessivas nomeações culturais – cubismo, socialismo, modernismo, surrealismo -, todas tendentes a libertar o ser homem do utilitarismo de umser em si, para assumir a existencialidade de um ser para si.

             Kafka foi surrealista. As visões cinematográficas de Orson Welles (1962) e David Jones (1992) sobre a obra literária “O Processo”, destacam o drama de ser humano, Dasein, angústia original das demandas por análise. Mesmo como tema existencial universal, a singularidade dosinthome é que constituirá a marca do processo analítico, subjacente na escritura de Kafka, e evidenciado nos actings do personagem principal, Joseph K-Kafka. As interpretações se completam.

             Orson Welles enfatiza e assume o lugar do Advogado, vitimizando o acusado Joseph K. Dessa forma, o roteiro de seu filme ressalta o processo persecutório, iniciado pela parábola da Lei, claramente foracluída, como predestinação de um sujeito psicótico. Joseph K. sofre alucinações sucessivas. Os outros do processo – as mulheres, o estudante, o espancador, o tio/tutor, o industrial, o pintor, o comerciante, o sacerdote, o juiz, o advogado – são projeções mandatórias de sua alienação ao Outro.

             O Joseph K. de David Jones assume a centralidade do drama, apresenta os sintomas da neurose obsessiva (Freud, “Totem e Tabu”, 1913) – atos obsessivos, medidas defensivas e ordens obsessivas -, mas consegue simbolizar a acusação e a culpa, com a parábola da Lei, embora “tarde demais”. A morte, afinal, é o ritual de expiação que irá libertar Joseph K. da hostilidade inconsciente à Lei (ao Pai) e do eterno recomeçar.

             O roteiro-processo começa com a destituição do eu egóico, documentos de identidade, vestimentas, alimento – o outro me rouba de mim e me aliena ao Outro, o dever-ser me aprisiona e me acusa sem culpa.Note-se que Joseph K. tem obsessão pela sentença, o vero-dito, mas o veredicto não vem de uma vez.

             O veredicto é ouvido pelo acusado nos diferentes discursos do Outro: não pode tocar nos livros do juiz, ser humano é ser culpado, a acusação é uma desonra, a punição é merecida, antigas escrituras falam da Lei – “Vossa sentença assim se manifesta justa, e reto o vosso julgamento. Eis que nasci na culpa, minha mãe concebeu-me no pecado.” (Salmo 50, Miserere). Pela via da interpretação analítica, essas inscrições poderiam ser nomeadas e constituir um sujeito livre do sofrimento psíquico e moral.

             Foi Agostinho de Hipona (353-430) que tratou o sofrimento moral como culpa original, transmitida a todos os homens por Adão, conforme o Gênesis bíblico. A atitude do homem na parábola da Lei, à espera de autorização para entrar, é agostiniana: a salvação, ou a condenação, depende da vontade de Deus. Nesse sentido, o processo é uma denúncia e uma denegação, porque a experiência religiosa, em Kafka e em Freud, é ateísta, resulta da força de desejos profundos, da angústia e da libido recalcada.

             Freud situa a origem da angústia na “repressão imposta pela sociedade” (O Mal Estar na Civilização, 1929), no choque da pulsão de vida com a pulsão de morte, do princípio do prazer com o princípio de realidade.  Daí a intensidade emocional do conflito neurótico de Joseph K.    Ele não consegue sair sozinho dos diferentes tribunais, e se pergunta: como acabará isso?

             Lacan aproximou a psicanálise do surrealismo, ao libertá-la de acusações e correntes, em dois sentidos: o sentido das abordagens utilitaristas, que constituem prisões em si mesmas; e o sentido da repressão dos elos de poder, que acusavam e decidiam quem estava dentro e quem estava fora da “sociedade psicanalítica”. Ele mesmo, Lacan, penetrou as portas da Lei e construiu o discurso da teoria psicanalítica, a partir da escritura do outro, Freud. A cadeia de significantes veio substituir a prisão dogmática.

             O processo psicanalítico pós-Lacan é surreal. Quem fizer transferência e se analisar, verá.  Ou falará tarde demais.

 

Rosa Said